Visualizar, humanizar, agregar: a importância do Mês da Visibilidade Trans

Marcelo Monteiro Psicólogo Colunista Fora da Trama

Em janeiro (janeiro lilás), comemoramos o Dia Nacional da Visibilidade Trans, mais especificamente no dia 29. Este marco, iniciado no ano de 2004, estabeleceu a primeira marcha civil de mulheres e homens transexuais e travestis para Brasília, exigindo respeito e reconhecimento às suas existências e identidades.

Naquele início de século, as leis brasileiras eram ainda mais rudimentares, machistas e patriarcais, marginalizando por completo esses sujeitos. Por isso a data da marcha, naquele final de janeiro, acabou virando símbolo de luta pela visibilidade das pessoas transexuais e travestis.

Por ser colunista de temáticas ligadas aos LGBTQ+ do Fora da Trama, resolvi trazer essa assunto à baila, para refletirmos novamente acerca dessa população tão segregada e perseguida, morta em Holocausto diariamente pelo preconceito de uma sociedade heteronormativista, patriarcal e extremamente intolerante e hipócrita, ainda encharcada por moralismos religiosos obsoletos e deturpados por certos charlatões e fascínoras travestidos de “lideranças religiosas”.

Mas por que fiz este adendo?

Pois o Brasil é HÁ ANOS é líder máximo do derramamento de sangue de pessoas LGBTQ+; sendo que não temos, legalmente, um sistema de leis que chancelam tais atrocidades, mas sim que tais se baseiam em regras morais, de forte fundamentação religiosa, que são antiquadas e perversas.

Na supracitada data, 29 de janeiro, a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (ANTRA) divulgará o tradicional balancete geral dos assassinatos de pessoas Transexuais e Travestis (TT), referentes ao ano de 2020. Em novembro do ano passado, trouxe um pouco sobre essa temática na minha coluna inaugural para esse Grupo.

Naquele momento, tudo já apontava para que o ano transcorrente se tornasse o pior, em número de crimes, da série histórica. Apesar de ainda não revelado os dados finais, as informações até aqui especuladas, vislumbram para uma realidade verdadeiramente catastrófica, concretizando a triste expectativa. Assim que os mesmos forem publicados, irei trazê-los para vocês.

Porém, o ano de 2021 já começou ‘manchado de sangue’, e o pior de tudo, sangue INFANTIL.

A história é tão estarrecedora que é até difícil de reportar. Existem tantas coisas absurdas que nem se sabe por onde iniciar a análise. Vamos aos fatos: em 04 de janeiro, na cidade cearense de Camocim, uma criança transexual chamada Keron Ravach foi brutalmente espancada e morta aos 13 anos. O seu corpo, de acordo com vários veículos de comunicação, foi encontrado já sem vida em um terreno baldio. Sim, uma criança foi morta e descartada, igual lixo, em um matagal.

Para agravar o caso (se é que é possível), o criminoso confesso é um ADOLESCENTE de 17 anos. Ele já foi reconhecido e preso no dia seguinte à tragédia. O assassino alegou ter agredido Keron devido a discordâncias quanto ao valor de um PROGRAMA SEXUAL contratado com a criança. Exatamente isso: o adolescente assassinou uma criança, pois ambos brigaram devido ao preço de um programa. E assim, de acordo com nota da própria ANTRA, a menina se torna a mais jovem vítima de transfeminicídio da história do Brasil.

Muitos moralistas podem pensar: “mas ela não prestava, estava até fazendo programa”. Mas isso além de nojento é algo totalmente descontextualizado da realidade das pessoas TT no Brasil. Primeiramente, fazer programa não é algo imoral, é uma profissão e, em muitos casos, a única alternativa de subsistência desse público, uma vez que o mercado de trabalho é vetado para quase todes TT. Sem emprego, com dificuldades financeiras e a marginalização, restam a prostituição e a drogadição.

Não raro, pessoas transexuais e travestis fogem de casa para evitarem serem mortas, ou são expulsas pela própria ‘família’, o que as força  submeterem – se a condições subumanas para ganharem dinheiro.

Não consegui encontrar detalhes da vida da menina, se ela vivia ou não com a sua família. Mas, seja como for, a pobreza é o fator determinante para a iniciação desses indivíduos na prostituição, drogas e crimes. Para piorar, não há políticas públicas que resguardem verdadeiramente esses sujeitos e suas existências, ‘jogando aos leões’ as pessoas TT.

Junte isso à uma cultura preconceituosa e odiosa, que interpreta tais identidades como imoralidade, indecência e obscenidade, e teremos a versão brasileira dos sistemas de castas indiano, sendo transexuais e as travestis grande parcela dos dalits (subcasta considerada de pessoas intocáveis e imundas, no hinduísmo ortodoxo). 

Keron era descrita como uma ótima dançarina, alegre e muito querida por todos. A polícia descarta que o crime tenha relação com a identidade de gênero da criança, mas sabe – se que a transfobia ensina a desvalorizar e menosprezar a vida desses sujeitos, banalizando – as a níveis extremos.

Sou contra a violência animal, budista e devoto de São Francisco de Assis, mas apenas para exemplificar o grau desta deploração sofrida por pessoas TT; é mais fácil você ser severamente punido por violência contra animais, como cães e gatos, do que por torturar ou assassinar um (a) TT.

Quem diz isso não sou eu, mas sim a ANTRA, já que dos transfeminicídios de 2019, apenas 09% dos criminosos foram identificados e somente irrisórios 07%, punidos (vide detalhes em minha coluna anterior, de novembro de 2020).

Aos 13 anos, Keron deveria estar fazendo atividades de crianças, não se prostituindo (pessoas próximas da menina questionaram a versão do criminoso sobre o programa, alegando que ela jamais faria isso). O mais triste é que essa trama de desgraças não se inicia ou encerra no caso dela, sendo algo muito mais amplo, profundo e complexo. A menina faria 14 anos dia 28 de janeiro (ela nasceu em 2007, para se ter uma ideia do quão nova era), véspera do Dia da Visibilidade Transexual. Impossível cenário mais emblemático e ilustrativo desta nossa realidade histórica.

Por isso, a campanha “Protejam Nossas Crianças Trans” é muito importante e urgente. A transexualidade na infância ainda é um assunto ‘pantanoso’, cientificamente falando, uma vez que não há consenso para a sua existência. Cientista de diversas áreas vem se debruçando sobre a temática nos últimos anos, mas ainda não existe uma postura científica fechada sobre o assunto, sendo por que há muito preconceito dentre os próprios estudiosos.

No entanto, em maio de 2019, durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde, da Organização Mundial de Saúde, foi chancelada – por diversos cientistas de todo o mundo – a retirada da transexualidade como um transtorno psiquiátrico. Sendo assim, a “disforia de gênero” finalmente caiu por terra.

Entretanto, independente da questão da aceitação ou não da transexualidade infantil no meio científico, o que é real e inegável é que existem crianças que se identificam com o “outro gênero”, e elas estão em vulnerabilidade na maior parte do globo. Some a este perigo o peso de se viver no país mais transfóbico da Terra, e chegamos à receita da desgraça.

Crianças LGBTQ+, transexuais ou não, precisam ser protegidas e especialmente assistidas, pois por aqui a cultura do “viadinho se conserta na porrada” não vai desaparecer da noite para o dia, e isso levará – na melhor das hipóteses – décadas para ser satisfatoriamente sublimada do ideário popular nacional.

Colunista do Fora da Trama

Marcelo Monteiro – Psicólogo graduado pela UFTM (CRP SP147821). Especialista em Docência no Ensino Superior. Pesquisador das áreas de Saúde Mental, Sexualidade e Cultura. Psicólogo clínico Cognitivo – Comportamental, com enfoque no tratamento de transtornos de Ansiedade. Ainda, colunista do FDT nas horas vagas.

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Grupo Fora da Trama

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Trabalho voluntário idealizado com o propósito de somar no combate à violência e apoiar o caminho de superação de relacionamentos abusivos. @foradatrama