A mulher no mercado de trabalho: Ascensão fictícia e o contrassenso do Movimento Sufragista

carta aberta de acolhimento

Introdução

Por diversas vezes fui questionada se o feminismo aceita “tudo que vier”, como se não tivéssemos um propósito definido ou como se uma feminista não tivesse críticas ao próprio movimento.

Conversei com um homem interessante que me contou sobre Emmett Louis Till, um menino que aos 14 anos foi torturado e morto por supostamente ofender uma mulher branca. A criança era preta e a acusadora uma sufragista branca. Ele foi acusado de agarrar e ameaçar a mulher, enquanto na realidade estava assoviando ao andar pela calçada.

O noivo da sufragista e seu irmão, os autores do crime, foram formalmente acusados pelo brutal assassinato e, em sequência, absolvidos por uma totalidade de jurados brancos – alegando que o corpo encontrado não era de Emmett. Porém, posteriormente, a identificação foi possível devido a um anel que o garoto usava, presente de seu pai.

Os irmãos receberam uma quantia em dinheiro para dar entrevista sobre o caso. Na ocasião, contaram em detalhes o crime e afirmaram não terem tido escolha. A mulher assumiu que partes do seu depoimento não eram verdade. (Tempo em que já estavam protegidos pelo princípio jurídico que determina que não poderiam ser julgados pela mesma causa depois de serem absolvidos.)

Aspectos negativos

Veja, um marco do feminismo foi o movimento sufragista, pela conquista do voto. Ao mesmo passo que garantiu emancipação em vários aspectos, teve também presente uma motivação vil e sórdida vindo de mulheres brancas racistas que visavam se diferenciar dos pretos.

Caso fosse para escolher uma crítica ao movimento político-social que me movimenta todos os dias, eu falaria que as sufragistas foram sim racistas e não lutaram a favor de equidade de gênero (mas sim contra um dos alvos do Patriarcado, os pretos – que foram escravizados; sem ao menos pensar que nós também somos alvo dessa mesma supremacia.)

Observações pessoais

Machistas criticando o feminismo falam mais sobre a emancipação social e sexual da mulher, falam mais de qualquer ascensão como se fosse um problema. A conquista no espaço do trabalho é grande exemplo e coloca a mulher em cheque. Ainda hoje é comum pessoas que duvidam da capacidade intelectual e profissional do ser humano por causa de seu gênero.

A independência incomoda. Mas, esteja pronta para incomodar.

A educação dada para uma menina tende a incentivar que ela sonhe em ser mãe e dona de casa, ou seja, (in)diretamente incentiva que ela seja no futuro dependente do seu marido. Não acho válido procurar um Príncipe encantado a vida toda!

Já se encontrou à espera de um homem que fosse seu prometido, sua metade, aquele que iria solucionar os seus problemas e te proporcionar uma vida digna, aquele capaz de te proteger e te dar uma família – como nas histórias de princesas – um príncipe encantado num cavalo branco??

KKKKKKKKKKKKKKKK

Desculpa, vou ter que rir.

Pois bem, respira fundo e descansa na certeza de que isso não existe e melhor, na certeza de que não existe uma obrigação de você encontrá-lo, ta? Afinal, quem precisa de metade se é inteira?

Temos diversos desejos em vida e por vezes não fazemos nada em forma de investimento para realização de nossos sonhos. É perigoso deixar o tempo passar a espera de Príncipe, pode ser que ele nunca chegue! E, se chegar, é bem provável que te decepcione, afinal esperar que outra pessoa te faça feliz e te realize é transferência de autorresponsabilidade.

Ainda…

Frequentemente às mulheres é atribuída a culpa pelo fim do casamento. É muita crueldade! Como se ela não tivesse sido capaz de cuidar do Patriarcal da casa… E a consequência disso é a permanência em casamentos infelizes e fadados ao fracasso.

Ainda hoje MUITAS mulheres estão submetidas à violência – moral, física, psicológica – também por medo de encarar a realidade pós fim da relação matrimonial. É bastante provável que tenha sido criada uma dependência emocional e econômica com o abusador…

Legislações que se fantasiam de proteção e zelo são aquelas que por anos nos impediram de ocupar espaços públicos, exercer cargos de poder e principalmente dificultaram a independência financeira da mulher, com intuito de que o homem fosse o provedor e dominante.

A independência financeira é a primeira, é a chave para todas as outras independências. Sabendo disso, fomos minadas de diversas proibições diante de leis que por anos permaneceram vigentes dizendo o que poderíamos ser e fazer no âmbito do trabalho.

Dados relevantes

A Revolução Industrial no século XVIII marcou a abertura em definitivo das portas do mercado de trabalho para as mulheres, porém, de forma precária e insalubre. Gestantes não possuíam nenhuma proteção da Lei, as jornadas eram exaustivas sob condições prejudiciais à saúde e as mulheres estavam sujeitas a diversos tipos de abuso, sendo vantajoso contratá-las pela mão de obra mais barata.

No início do século XX as mulheres ainda não tinham direito ao voto, nem à propriedade e não podiam exercer cargos públicos, pois a Lei as consideravam seres inferiores. A conquista de espaço no mercado de trabalho reduziu a dependência do protecionismo masculino, numa sociedade machista em que elas deveriam ser submissas primeiro ao pai e depois ao marido.

Em 1932, no súbito pretexto de proteger o trabalho feminino, entrou em vigor o Decreto Lei 21.417 que proibiu o trabalho da mulher no período noturno das 22:00 as 05:00 horas, vedou a remoção de peso e concedeu dois intervalos de meia hora cada para amamentação durante os primeiros 06 meses de vida do filho. Veja o texto da lei revogada:

  • Art. 2º O trabalho da mulher nos estabelecimentos industriais e comerciais, públicos ou particulares, é vedado desde 22 horas até 5 horas.
  • Art. 4.º Às mulheres empregadas em estabelecimentos industriais e comerciais é vedado remover materiais de peso superior ao estabelecido nos regulamentos elaborados pela autoridade pública.

O artigo 446 da Consolidação das Leis do Trabalho presumia autorização para o trabalho da mulher casada. Revogado em 1989, o dispositivo trazia o seguinte texto:

  • Art. 446 – Presume-se autorizado o trabalho da mulher casada e do menor de 21 anos e maior de 18. Em caso de oposição conjugal ou paterna, poderá a mulher ou o menor recorrer ao suprimento da autoridade judiciária competente.
  • Parágrafo único. Ao marido ou pai é facultado pleitear a rescisão do contrato de trabalho, quando a sua continuação for suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher ou prejuízo de ordem física ou moral para o menor. (Revogado pela Lei nº 7.855, de 24.10.1989).

Consequências

Nesta toada, se tornava “bastante propício” para mulher e direcionados a ela os cuidados do lar. Estudos estimam que as mulheres passam mais que o dobro do tempo realizando afazeres domésticos do que os homens. Isso dificulta a inserção no mercado de trabalho até os dias de hoje. Nota-se também a impossibilidade de se dedicar à qualificação de sua mão de obra.

Às mulheres é perguntado em entrevistas se elas têm filhos, se pretendem ter, por vezes exigidos testes de gravidez… Até mesmo o ciclo menstrual é questionado como se problema fosse, como se o fato de sermos cíclicas nos tornasse menos capazes. Quantas vezes você já ouviu que uma insatisfação só poderia ser fruto de Tensão Pré-Menstrual, ou que mau humor é falta de sexo?

Conheço mulheres incríveis. Nós somos intuitivas, perspicazes, investimos em inteligência emocional e isso é, ao contrário do que dizem, essencial para o business. Mas, se para sobreviver é necessário fazer dinheiro e o homem espera que você dependa dele para subsistir e até existir, provavelmente é onde o calo vai apertar…

Contradições

O pai de família que participa do happy hour está precisando relaxar; a mulher após um dia cheio tem de estar em casa sendo cuidadora do lar e das pessoas que coabitam com ela. Quando ousa querer se qualificar de alguma forma se vê obrigada a lidar com a tripla jornada de trabalho: o produtivo (trabalho que gera salário, fora do espaço doméstico), o reprodutivo (trabalho não remunerado no espaço doméstico) e os estudos (cursos, faculdades, especializações em geral).

Pelo que vejo por aí, ser capaz de lidar com isso causa revolta, os trabalhos domésticos e o ensino são trabalhos essenciais para a subsistência de qualquer pessoa e consequentemente para continuidade da humanidade. Assim como gerar uma vida! E veja, são desvalorizados porque exercidos por mulheres, em sua maioria. O tão famigerado ciclo menstrual é simplesmente a possibilidade que ocorre mensalmente de a mulher gerar uma vida.

Mulheres na cozinha são cozinheiras, homens são chef… a nomenclatura também pesa e é reflexo de um pensamento patriarcal retrógrado que gostaria de manter a limitação nas leis, para controle do nosso copo, mente, alma e espírito.

Há também aquelas que não têm de lidar com tripla jornada, nem com a dupla, mas cujo estilo pessoal de vida coloca em cheque a capacidade intelectual. Há empresas/empregadores que contratam mulheres pela oportunidade de um futuro assédio.

Explico: há empregadores que contratam uma mulher por pertencer a um padrão de beleza agradável a eles, visando a oportunidade de algum relacionamento extracontratual – e as investidas destes homens são na realidade assédio moral e sexual.

Pensando na histórica e extensa inferiorização da nossa mão de obra, na maioria das vezes somos as empregadas e os assediadores os chefes, essa posição (ou imposição) hierárquica dita as regras de quem será o culpado nessa relação trabalhista, então já sabem quem provavelmente vai perder o emprego ao denunciar um assédio no ambiente de trabalho né?

Conclusões

É tempo de cessar a romantização do cansaço feminino, como se uma mulher capaz de lidar com três jornadas diferentes e ficar sem tempo de cuidar de si fosse bonito. Com tempo de olhar para dentro é que tudo em volta flui, em todos os âmbitos da vida, começando pelo profissional.

Pois então que tenhamos o direito de tempo e liberdade para usufruir dele, condições para usufruir dele.

Vou ter de citar uma música que amo novamente (já fiz isso em textos anteriores): “prospere interiormente, tudo ao seu redor vai prosperar”.

Ser sábia é ser também ignorante, é assumir o desconhecido para conhece-lo. Amo meu trabalho, através dele fui capaz de perceber o tanto de informações que eu não conhecia (e olha que eu estou só começando). Mas tive desprazeres também – e ainda tenho – quando duvidam da minha capacidade seja pela minha aparência ou pelo fato de eu ser mulher.

“Você vê o risco real de diante do conflito tomar uma posição?”

A Lei mudou sim, mas na realidade a mudança no texto de Lei é puramente teórica. A efetiva melhoria de oportunidades e condições de trabalho dignas para as mulheres depende muito mais dos agentes que praticam a Lei, neste caso, nós mesmos.

A Constituição de 88 é prova viva disso. Afinal, nosso dispositivo Pátrio se esforça em numerosos e volumosos artigos com intuito de assegurar igualdade – e nós somos um país completamente desigual.

Enfim…

Com pesar, ouso dizer que as conquistas de direitos trabalhistas para as mulheres não foram capazes (ainda) de ultrapassar as barreiras do Patriarcado. Nós perdemos espaço e oportunidades simplesmente por sermos mulheres. A depender da profissão, a mulher pode ganhar de 65% a 75% do que recebe um homem para realizar a mesmíssima atividade. Nos cargos de chefia as mulheres chegam a ganhar metade.

As estatísticas do IBGE mostram que as mulheres são maioria na população, mas são minoria entre os trabalhadores ocupados, e o rendimento das que trabalham equivale a 70% do recebido por homens com a mesma escolaridade.

O mercado de trabalho é um reflexo dolorido da desigualdade de gênero.

Além do desequilíbrio financeiro, há a consequente falta de qualidade de vida em razão da má distribuição de papéis – que, de modo arcaico, perdura na nossa sociedade.

Ao conquistar o direito ao voto e de se candidatar, quebramos barreiras! Apenas quando representadas podemos defender nossos interesses. Mas a luta pela igualdade depende também da interseccionalidade.

Que sejamos então contra a supremacia do patriarcado e de tudo aquilo que ele representa. A nossa luta pela equiparação salarial e de oportunidades não pode estar manchada de sangue dos pretos, dos homossexuais, transexuais, ou de qualquer ser-humano.

Somos diversificados e não minoria.

Colunista do Fora da Trama

Mariana Flauzino – Advogada (OAB 431.278) formada pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília. Atua na área de Direito Trabalhista. Simultaneamente, é pós graduanda em Direito da Mulher e, por fim, colunista do FDT.

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Grupo Fora da Trama

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Trabalho voluntário idealizado com o propósito de somar no combate à violência e apoiar o caminho de superação de relacionamentos abusivos. @foradatrama