“Falar sobre autocuidado e a narrativa de mulheres negras é partir de uma condição de subjugação e elaboração de sofrimentos ancestrais. Para isso, precisamos enfrentar esse problema no âmbito social, político e moral.
Para além de um discurso embasado no autocuidado, partimos do ponto em que antes de experienciar o amor, as meninas e mulheres negras são ensinadas a serem fortes para sobreviver.
Aspectos da individualidade, da estigmatização da aparência e do antirracismo
Essa força que é cobrada das mulheres negras advém de uma visão romantizada de sofrimentos diários, já que desde muito cedo são condicionadas a silenciarem seus sentimentos para sobreviverem. Eis, então, o mito da mulher forte, a mulher que se realiza em muitas áreas, que cuida de todos, mas que negligencia seu autocuidado.
E será que negligencia? Podemos facilmente substituir o que pode ser considerado como suposto descuido para a compreensão de que ser mulher e negra é também sofrer com a estigmatização da aparência.
É, portanto, ter que reconstruir todos os dias a autoestima. Já imaginou o quanto é doloroso e cansativo ver a beleza negra censurada ou tida como algo inexistente ou exótico? (sem excluir também o sofrimento advindo da hiperssexualização de um corpo erótico, porém, não belo).
Este ‘descompromisso’ com o autocuidado emocional, adquirido como forma de sobrevivência, resulta no empobrecimento do cuidado com o mundo interno.
Por muito tempo essas mulheres tiveram suas dores silenciadas e, às vezes, como forma de proteção, resistem em entrar em contato com as emoções que o tema provoca, por temer a própria vulnerabilidade; por temer confrontar a imensidão da dor que isso provoca e pela solidão do lugar que se ocupa.
Muitas dessas mulheres cresceram em famílias constituídas por mães, tias e avós que criaram seus filhos sozinhas, sem companheiros, ou ainda vivenciaram relacionamentos indignos, violentos e hostis.
O verdadeiro inimigo da construção de uma autoestima saudável é o racismo, que atinge diretamente a mulher negra em todas as áreas de sua vida. Viver num país racista é ter o autocuidado como forma de militância diária. […]
Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’’. (Bell HOOKS, 1995, p. 469).
Pensar na construção de vínculos afetivos saudáveis é estar consciente do sofrimento que opressão social causa e, com isso, promover ações que possibilitem o fortalecimento da subjetividade, respeitando as histórias individuais desses corpos negros, acolhendo esse sofrimento e condenando enfaticamente todo tipo de violência às quais têm sido submetidos por séculos.
‘O amor cura. Nossa recuperação está no ato e na arte de amar.’ E, como canta Rincon Sapiência: ‘faço questão de botar no meu texto que pretas e pretos estão se amando’. Abraços”.
Colunista do Fora da Trama
Eilane Santos – Em síntese, é psicóloga clínica (CRP 06/141278) pós-graduanda em psicologia fenomenológica-existencial e humanista e em neuropsicologia clínica. Ao mesmo tempo, atua em grupos feministas e antirracistas de discussão crítica. Por fim, é colunista confirmada do Fora da Trama.